que boa ideia, virmos para as montanhas

(2018)

NOMEAÇÕES

Eleito um dos melhores espectáculos do ano de 2018 pelo jornal Expresso

Venceu a categoria Melhor Texto Português Representado em 2018 pela SPA – Sociedade Portuguesa de Autores.

ONDE E QUANDO

Lisboa
CAL – Primeiros Sintomas
18 a 29 de Abril de 2018

Almada
Festival de Almada
Auditório António Assunção
12 a 14 de Julho de 2018

(13 apresentações)

que boa ideia, virmos para as montanhas serve-se da canção de Leonard Cohen, Famous Blue Raincoat, uma carta em que Cohen se dirige a alguém com quem Jane, sua mulher, teve um caso. Inspirado por essa carta, e numa espécie de hino às relações humanas, o espectáculo nascerá do movimento de adivinhar o que seria se esta pessoa anónima, e ausente, respondesse com uma visita. 
Uma noite, uma dessas noites banais, inesperadamente a memória de um crime bate à porta. Leonor (Nídia Roque) e André (Bernardo Souto) são visitados por Isabel (Rita Cabaço). Traz consigo uma amizade antiga, ao mesmo tempo que a culpa de André, e o desamparo de Leonor. Durante essa noite, os três, revisitando o passado, percorrem o trilho que os leva para a consciência do seu amor e da sua solidão.

FICHA TÉCNICA/ARTÍSTICA

Criação: Teatro da Cidade
Texto e Encenação: Guilherme Gomes
Interpretação: Bernardo Souto, Nídia Roque, Rita Cabaço
Vozes: Guilherme Gomes, João Reixa
Cenografia: Guilherme Gomes e Rui Seabra

Cenografia: Guilherme Gomes e Rui Seabra  
Concepção de Figurinos: Teatro da Cidade  
Desenho de luz: Rui Seabra  
Produção: Teatro da Cidade

FOLHA DE SALA

Às quatro da manhã despertámos. Abrimos os olhos, sentindo apenas o movimento das pálpebras ao abrir. Na escuridão do quarto pouco vemos, adivinhamos que os móveis se encontram ainda no lugar onde os deixámos. O vazio traz-nos ao peito a sensação de vertigem. Nesse momento tocamos qualquer coisa mais profunda, espiritualizamo-nos, contactamos com o que nos transcende: com o medo, a confusão, o desconhecido, o infinito. Tudo porque abrimos os olhos e não fomos capazes de nada para além de adivinhar.
Esta pequena sala azul, construída com as nossas mãos, não é uma sala: esta sala são todas salas, para lá da janela todas as paisagens, esta noite uma noite qualquer, e por isso noite nenhuma, paisagem nenhuma, sala nenhuma. Um conjunto de chão e paredes levantadas, uma fortaleza para a intimidade, uma casa de bonecas, um cenário de teatro. Aos passos de três pessoas, que nomeamos apenas para nos organizarmos, o chão range. É um lugar em que o movimento se denuncia: a sua economia é um exercício de atenção. “Nesta sala”, poderíamos dizer, “deves mover-te com cuidado, medindo até a pressão que imprimes em cada passo”.
Às quatro da manhã despertámos com um som. Algures na nossa memória, imaginando que somos um só, ecoam os primeiros acordes dedilhados na guitarra de Leonard Cohen. Logo a seguir, podemos ouvir a sua voz dizer-nos que sim, de facto “it’s four in the morning”, é final de Dezembro, ele escreve só para saber se estás melhor. E afinal é a isso que nós respondemos. Se Leonard queria saber se estás melhor, eu lhe respondo que não. Que precisas de abrir os olhos na escuridão, dar-lhes tempo, a esses olhos da insónia, para que se habituem, para que lentamente se vão formando de novo as arestas do quarto, para que eles diluam a escuridão que te rodeia.
Numa entrevista que apanhei na internet, um Cohen ainda jovem diz a propósito da capacidade de um amigo para cantar que ele não está “amarrado a nada”. Pergunta-se-lhe se isso ajuda a cantar. “Creio que ajuda a tudo”, responde. Talvez isso se pudesse dizer quando se pensa na origem deste que boa ideia, virmos para as montanhas.
Para a tarefa de responder a uma carta que não nos foi dirigida, lancei um desafio ao Bernardo, ao João, à Nídia e à Rita: que eu escrevesse um texto, respondendo a uma vontade que poderia chamar “de sempre” em mim, uma vez que aos vintes ainda ninguém tem vontades antigas. E que, escrevendo, experimentasse encenar. Porque também isto é a nossa Cidade, e não estamos, citando a entrevista de Cohen, amarrados a nada, eles aceitaram. E comecei a escrever, a ouvir, a ver, a ler, a traduzir Leonard Cohen.

Comecei a ler o que ele anunciava ler. A reparar nas pontes directas com Lorca. A ouvir os seus companheiros. Enfim, mergulhando numa espécie de diálogo com o homem que, quando a minha vontade de escrever começa, tinha morrido há muito pouco tempo. Neste terceiro espectáculo do Teatro da Cidade, continuamos a procurar, a experimentar. Desta vez, tentando levantar aquilo que para a Nídia na primeira leitura lhe soou a um poema; à Rita, ainda há poucos dias, uma canção; ao Bernardo um longo e exigente discurso silencioso. Para o João, escrevi as falas de um homem que conta as estrelas, fiel à maneira como olho para Lorca e para o próprio João. Pela minha parte, deixei um “sincerely, G. Gomes” no rádio. Para além de estar cheio da paciência e da humildade que caracterizam os mestres ou os professores, o Rui, que está connosco desde que a Cidade é Cidade, acolheu-nos em sua casa para que construíssemos o cenário, guiou-nos nessa construção, compreendeu o que andávamos a sonhar, e deu-nos tudo, o próprio sonho. Também à Cristina Reis devemos um obrigado por tanta coisa – mas agora, em particular, pelas ideias que, numa visita que nos fez, deixou.
Talvez este espectáculo se deva a uma espécie de luto que tive que fazer, ouvindo Cohen e lendo Roland Barthes, entre outros valiosos conselheiros – como  Ingmar Bergman e a senhora Ellen Berscheid, que conheço através um artigo em particular: Love in the Fourth Dimension (lá está, de novo, a quarta hora da madrugada). Com eles comecei a tentar compreender o Amor e a Solidão – para mim (e de mim) conceitos que se tornaram quase inseparáveis. A eles perguntei o que poderia ser um abraço, o significado das laranjas, aprendi a fina barreira que parte o Amor em vários. A todas as perguntas, por mais palavras que lesse, um imenso silêncio servia de resposta. Não se teoriza sobre o Amor, não se compreende a Solidão. Perante eles estamos como perante o nascer do sol: experimentando apenas. É nesse silêncio, o mesmo que encontramos quando às quatro da manhã despertámos, que tudo acontece. No silêncio nos movemos.
E ao Bernardo, à Nídia e à Rita pedi a hercúlea tarefa de dizer mais calados do que quando falam. Vemos pessoas constantemente pensando. Somos testemunhas de um encontro que evoca tanto, que palavras não foram feitas para circunstâncias assim. Nestes momentos olha-se, ri-se, chora-se, bate-se, foge-se, aguenta-se. Nada se diz perante o que é maior do que nós, perante aquilo que nos foge entre os dedos, impossível de prender.
Às quatro da manhã despertámos para o vazio, no vazio recordando as feridas que, quando lhes tocamos com a ponta dos dedos, reparamos ainda sangrarem. Circunstância inevitável, impossível de remediar senão com confiança no Tempo. Às quatro da manhã, despertamos com a certeza de que o sol vai nascer.
O que é, às vezes, no silêncio da noite…

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