invocação ao meu corpo
(2020)
ONDE E QUANDO
Viseu
Auditório do IPDJ
13 e 14 de Novembro de 2020
(2 apresentações)
Em “invocação ao meu corpo”, um Bobo assiste ao espectáculo do mundo: dois soldados discutem a natureza do ser humano no rescaldo da batalha de Aqaba, pondo em causa valores e tradições e levantando o pano sobre o conflito entre razão e paixão.
No seguimento de “lamento de ĉiela” (2019), “invocação ao meu corpo” é ainda uma tentativa de compreender o conceito de anomia, criado por Émile Durkheim para designar o momento em que assistimos a uma ausência de valores que guiem a sociedade.
FICHA TÉCNICA/ARTÍSTICA
Texto e Encenação: Guilherme Gomes
Interpretação: Catarina Luís, Mauro Hermínio, Rita Cabaço
Colaboração: Sílvio Vieira
Cenografia: Ângela Rocha
Desenho de Luz: Rui Seabra
Espectadora Infiltrada: Filipa Godinho
Escultura para Cartaz: Liliana Velho
Registo vídeo: Francisca Manuel
Fotografias: Luís Belo
Produção: Teatro da Cidade
Coprodução: CCB
Apoio: Fundação Calouste Gulbenkian, VISEU CULTURA – Município de Viseu (através do projecto CRETA – laboratório de criação teatral), IPDJ Viseu, CAL – Primeiros Sintomas
Agradecimentos: Fábio Paulo, Luís Leitão, Miguel Ponte e Pedro Carraca
FOLHA DE SALA
“Telegrama a meio do caminho”
Escrevo a meio do caminho, no jardim de Santa Cristina, em Viseu. Isto não teria importância, se há quase dez anos não me tivesse sentado neste jardim para ler não sei porque floriram no meu rosto, os olhos e os versos que há em ti. São palavras que Eugénio de Andrade encadeou, e ecoam agora, a meio do caminho, porque parecem já insinuações do destino. A ideia para invocação ao meu corpo apareceu há dois anos, na biblioteca do ISCTE. A palavra anomia, escrita na capa de um livro de Jean Duvignaud, foi como um primeiro passo na direcção deste espectáculo. Anomia refere-se ao momento em que uma Sociedade velha caiu, e a nova Sociedade ainda não se ergueu. Quando caem as balizas que nos guiam, como nos orientamos? Quando não há o nome, ou a direcção, como fazemos? E pode referir-se a todos os desenquadrados. De certa maneira, a todos os líderes de revoltas. Pode referir-se a Antígona, ou a São Paulo. Precisamente na história de São Paulo a caminho de Damasco, interessa-me muito o que terão sentido os seus companheiros ao ver o seu líder recuar na missão que os movia. Perder o nome e a direcção, ali mesmo. O momento da sua revelação é uma pergunta: porque me persegues? É no sentido da tolerância, e convocá-la parece-me importante nos dias que correm. As duas versões que Caravaggio pintou desta revelação não só me ensinaram a ler esta história, como foram minhas companheiras de escrita. E a importância do olhar nos quadros de Caravaggio ecoa em cena, que acaba por ser sobre isso, exactamente: olhar. Olhar francamente. Olhar totalmente. Olhar como quem não sabe.
Olhar como quem descobre, e não como quem confirma. Uma condição, parece-me, para que a revelação se dê. E uma condição, parece-me, para contracenar. Quando primeiro pensei em invocação ao meu corpo, título que roubei a Vergílio Ferreira, pensei na importância que o corpo tem para a nossa identidade, uma certeza que gostaria de colocar em causa. Queria falar sobre transsexualidade. Mas senti que não seria capaz de fazer justiça. O assunto continua presente, espero, numa provocação em que não importa se quem está em palco tem género, na sensação de alguém que está preso a um lugar que não sente como seu, e na história daquelas duas personagens: soldados da Revolta Árabe. Revolta que aparece porque, em boa hora, duas traduções de Os Sete Pilares da Sabedoria foram lançadas enquanto escrevia o espectáculo.A Revolta Árabe, uma revolta pela afirmação de um povo, pela concretização da sua identidade. Uma revolta em que os soldados faziam um caminho, como São Paulo, em direcção a Damasco. Enquanto escrevo, não sei como é o espectáculo que vão ver. Ainda estamos a meio do caminho. A Ângela ainda semeia as ervas altas, a Catarina, o Mauro e a Rita, ainda desenham o arco das personagens, o Rui ainda olha para os filtros de luz, o Sílvio ainda leva as mãos à cabeça com a organização de tudo isto, a Filipa ainda nos traz referências bibliográficas, e eu ainda não tenho a certeza sobre aquela palavra.
Guilherme Gomes, 19 de Outubro de 2020